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Proust ou de como a vida só faz sentido na arte

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Sete livros e quatro mil páginas inauguradas em 1913

Por Marcelo Backes *

Publicado no Sul21 em 3 de março de 2013

Eis que tenho meio segundo para descrever as peculiaridades do avanço gracioso e ponderado de uma tartaruga. Pronto, e já se passaram cinco.

Às voltas com as quatro mil páginas de Em busca do tempo perdido (A la recherche du temps perdu), de Marcel Proust, cujo primeiro livro, No caminho de Swann, foi publicado há 100 anos, alguém que se debruça sobre as incontáveis linhas só pode se manifestar impotente ao ver o abismo de uma tela em branco bem restrita e cheia de ameaças à sua frente. O espaço será sempre parco diante de um universo tão vasto, e os milhões de páginas escritas sobre as referidas quatro mil são apenas mais uma prova disso.

Vá lá. Os sete livros de Em busca do tempo perdido, essa obra maior da literatura universal, foram publicados entre 1913 e 1927. Proust morreu em novembro de 1922; quer dizer, metade de seu romance monumental foi publicada postumamente. Desde o segundo volume do quarto livro, Sodoma e Gomorra (1923), passando pelo quinto (A prisioneira, 1923) e sexto livros (A fugitiva – Albertine desaparecida, 1925) até chegar ao sétimo e último, O tempo reencontrado, publicado em 1927, sua obra foi póstuma. Dos livros anteriores, o primeiro, No caminho de Swann, foi recusado pela Gallimard, na época sob o comando de André Gide, e publicado às custas do autor há exatos 100 anos, em 1913, na pequena editora Grasset; o segundo, À sombra das raparigas em flor, já seria publicado pela Gallimard em 1918; o terceiro livro em dois volumes, O caminho de Guermantes (em Portugal o livro leva o título de O lado de Guermantes), foi publicado entre 1920 e 1921; e, por fim, o primeiro volume de Sodoma e Gomorra chegou aos olhos do público também em 1921, um ano antes da morte do autor.

A primeira edição da pequena Grasset custa 7.700 euros no eBay

O primeiro livro de Em busca do tempo perdido não chegou a causar sensação, e Proust só alcançou a fama depois que o segundo, À sombra das raparigas em flor, ganhou o Prêmio Goncourt, em 1919. Nos tempos da primeira guerra mundial, Proust ousava lançar uma obra marcadamente subjetiva, adquirindo desde logo a pecha de reacionário, que o acompanha até hoje segundo o conceito de boa parte da crítica que desconhece sua obra e não sabe o quanto Proust se ocupa da mesma primeira guerra no sétimo volume e que todas as transformações pelas quais passa não apenas a sociedade parisiense e francesa, mas o mundo inteiro, jorram livres no subsolo da narrativa.

A obra antes da Recherche

Antes de sua obra-prima, Marcel Proust se ocupou de um livro ensaístico intitulado Contra Sainte-Beuve, entre os anos de 1908 e 1910, publicado apenas em 1954. Mais do que uma obra autônoma, Contra Sainte-Beuve apresenta uma série de textos dos Cahiers, selecionados segundo pontos de vista específicos e também para clarear as diferentes etapas do desenvolvimento de Em busca do tempo perdido. Na obra, Proust ataca Sainte-Beuve e não se limita a acusá-lo de não ter reconhecido os verdadeiros gênios de seu tempo, emparelhados com autores de terceira categoria, mas inclusive questiona o método de abordagem do maior crítico francês da época. Segundo Proust, Sainte-Beuve encara os livros como uma espécie de salão ao qual dirige seus comentários em uma conversação elegante, mas sem substância – corrigindo aqui e retocando acolá, para elogiar além –, que jamais atinge o âmago da questão literária e vincula em demasia o comportamento do artista à qualidade de sua obra.

Retrato de Proust quando jovem

Mas Proust estreou mesmo na literatura com Os prazeres e os dias, uma coletânea de narrativas e esboços em prosa também publicada a suas próprias expensas em 1896. A narrativa mais conhecida da coletânea é “A confissão de uma jovem moça”, e principia com a mãe da moça contemplada no título morrendo de ataque cardíaco ao surpreender a filha em abraços proibidos com um homem. O sentimento de culpa leva a filha a uma tentativa de suicídio. Antes de morrer, ela ainda confessa por escrito como havia sido feliz com a mãe durante a infância e como passou a se sentir dilacerada entre as tentações do instinto e a severidade vã em relação a si mesma mais tarde. O clima da Combray da infância de Marcel, típico sobretudo do primeiro livro da Recherche, já aparece descrito em detalhes, e os efeitos da tão decisiva “memória involuntária” são antecipados de maneira pujante, por exemplo quando um momento fundamental da infância da filha é despertado e trazido de volta à memória em toda sua intensidade através de um beijo da mãe.

O livro Pastichos e escritos diversos (Pastiches et mélanges) reúne paródias e ensaios de Proust e foi publicado em 1919. A maior importância da obra – de qualidade irregular – é o fato de também desvendar detalhes que seriam desenvolvidos mais extensiva e intensivamente em seu romance definitivo, a Recherche.

Mas a obra que se aproxima mais de perto de Em busca do tempo perdido é o romance Jean Santeuil, no qual Proust trabalhou provavelmente entre 1896 e 1904, e que também seria publicado apenas postumamente, em 1952. O romance funciona como uma espécie de esboço à Recherche, como um manancial de matéria ainda não burilada suficientemente e nem de longe esgotada. Vários dos elementos temáticos da obra-prima já se encontram reunidos em Jean Santeuil. Ainda falta no romance, contudo, a estrutura decisiva que amarra a matéria “recordada” a um Eu mergulhado na atividade de recordar, bem como a dialética labiríntica do outrora e do agora, do ontem dos acontecimentos cheios de saúde e do hoje da lembrança enferma, posta em movimento pela já citada mémoire involuntaire.

O Trocadero no início do século XX (clique para ampliar)

A Recherche

Marcel Proust trabalhou quase vinte anos – e intensamente – em sua obra-prima.

Em busca do tempo perdido canalizou e catalisou de modo tão absoluto a energia produtiva do autor, que a obra está tão intimamente ligada a ele como nenhuma outra obra se encontra ligada a seu autor. A Recherche significa o supra-sumo quase único da produção de Proust, o turbilhão que devorou todo o resto de suas obras, transformando-as em meros esboços daquilo que viria mais tarde, em veredas que levam à grande clareira onde pôde enfim ser levantado o monumento de um romance imortal. Se James Joyce é lembrado pelo Ulisses, escreveu também os Contos dublinenses, o Finnegans Wake e o Retrato do artista quando jovem. Se Robert Musil é lembrado por O homem sem qualidades, escreveu também O jovem Törless, os três contos grandiosos de Três mulheres, uma série de peças teatrais, ensaios como “Sobre a estupidez” e as duas novelas de As reuniões. Se Guimarães Rosa é marcado pelo Grande sertão: veredas, também é o autor de Sagarana, de Tutaméia etc.

Em busca do tempo perdido fez de Marcel Proust um mito.

O quarto de Proust

Tanto que hoje em dia todo mundo sabe – ou poderia saber – até mesmo o que o autor apreciava em seu café-da-manhã (duas xícaras de café bem forte, da marca “Corcellet”, com leite quente, e dois croissants da Rue de la Pépinière), servido pela fiel Cèlèste em uma bandeja de prata, porém jamais antes das quatro ou cinco horas da tarde. E inclusive conhece – ou poderia conhecer – o número fabuloso de toalhas que o autor usava para secar sua pele sensível (seriam cerca de vinte por dia, mostrando que todas as estrelas contemporâneas não passam de plagiárias). Depois de não atender aos desejos do pai, o médico Adrien Proust, que o queria na carreira diplomática, Marcel Proust tentou a advocacia e mais tarde foi corretor da bolsa. Nada deu certo, nem a profissão de bibliotecário, que jamais chegou a desempenhar de verdade, apesar de ser detentor do cargo. Do fracasso profissional do homem, nasceu o artista…

Pouco antes de começar efetivamente os trabalhos na Recherche, Proust ainda participou da tradução de duas obras do crítico de arte, escritor e poeta inglês John Ruskin, A bíblia de Amiens, publicada na França em 1904, e Sésamo e flor-de-lis, publicada em 1906. O trabalho nas obras e o entusiasmo de Proust em relação ao autor inglês é decisivo no desenvolvimento de alguns conceitos artísticos trabalhados em Em busca do tempo perdido.

Mas que é de Em busca do tempo perdido?

A obra é circular e o narrador planeja, ao final da mesma, escrever a obra que acaba de concluir, apresentando o plano daquilo que realizou. Quer dizer, no fundo o autor apenas está começando a escrever o romance que o leitor acaba de ler. Em uma visita ao salão da nova e surpreendente princesa de Guermantes, ao qual só vai por mais uma vez não conseguir começar a escritura da obra – se não nasci para a arte, não vou abrir mão da vida, pelo menos, ainda que enfadonha –, o narrador tem uma grande epifania e descobre como as coisas devem ser ditas e volta pra casa pra viver na solidão e reconstruir sua vida. E seu romance é, ao mesmo tempo, a história de uma vida individual, e um grande romance societário de arcabouço semelhante ao de A comédia humana, de Balzac, ainda que bem mais concentrado, e fundamentado sobre um único personagem, que poderia se chamar Marcel.

Gide nem leu o livro levado à Gallimard, convencido de que o autor era apenas mais um dândi

Ele caracteriza-se pela complexidade de planos temporais paralelos, pelas nuances de luz e sombra projetadas sobre o narrado. São círculos concêntricos de narrativas e personagens incontáveis, abandonados agora para voltar a ser retomados centenas de páginas adiante, revelando sempre novos e surpreendentes aspectos de sua personalidade. O universo das figuras é tão vasto que a edição da Recherche feita pela Plêiade entre 1987-1989 traz um índice de personagens com mais de 120 páginas.

Realidade e ficção

Muitas das personagens de Proust são baseadas em figuras reais, que viveram na época em que o autor frequentava assiduamente os salões de Paris.

A linha que separa a ficção da realidade, aliás, é tênue, e se mostra bem mais difusa em Marcel Proust do que já era em outros autores. O narrador de Proust recebe seu próprio nome, Marcel, mas nem por isso pode ser confundido com ele, até porque o eu anônimo que narra e incansavelmente narra apenas diz, a certa altura, que seu nome poderia muito bem ser Marcel. Ademais, no último livro, O tempo reencontrado, há um alerta taxativo – e também por isso duvidoso – de que na Recherche não se dá notícia de sequer um único fato que não tenha sido inventado, de que não existe uma só figura no romance baseada em uma pessoa real. O máximo que se pode dizer é que o alerta vem cerca de quatro mil páginas atrasado, sobretudo depois de Proust ter elevado a fofoca à categoria de componente literário dos mais nobres – no que aliás imita o poeta alemão Heinrich Heine, bem anterior a ele –, e depois de tantos terem se sentido retratados no romance de maneira tão fiel a ponto de romperem relações com o autor após a publicação da obra (por exemplo Laure Hayman, uma cortesã, que se reconheceu na figura de Odette de Crécy e escreveu uma carta ofensiva a Proust, na qual o chamava, entre outras coisas, de “monstro”). O próprio autor chega a admitir indiretamente o caráter real de seus personagens no mesmo O tempo reencontrado, ao dizer que “um livro é um grande cemitério (…) e na maior parte dos túmulos os nomes apagados já não podem mais ser decifrados”. E fantasmas, fantasmagorias não são contempladas com a concretude de uma necrópole.

Marcel Proust com a mãe Jeanne e o irmão Robert

O próprio narrador tem muito do autor, bem mais do que o nome eventual. A adoração pela mãe (Marcel Proust é filho de Jeanne Proust, nascida Weil, uma tradicional família judia oriunda das proximidades de Stuttgart, na Alemanha) é tanto do escritor, quanto do personagem. Este último é filho único, porém, ao contrário do homem real, que teve um irmão com o qual jamais cultivou uma relação desprovida de problemas; além da verossimilhança poética, portanto, talvez uma correção tardia à realidade. Tanto autor quanto narrador são mimados e enfermiços, sofrem de asma e demonstram verdadeira veneração pela elegância feminina. De modo que Em busca do tempo perdido poderia ser caracterizada como uma espécie de autobiografia ficcional de estrutura bem refinada e nem um pouco direta.

Proust evita, por uma questão de princípio, a reprodução fiel à natureza conforme é apregoada pelo romance psicológico tradicional. O autor prova a cada linha, conforme suas próprias palavras, que “uma hora não é apenas uma hora”, mas sim um vaso “cheio de aromas, de tons, de planos e de climas”. E eles evocam, eles invocam quase que involuntariamente o passado difícil, que depois de muita luta rebenta em turbilhões de repente.

Em relação ao caráter ao mesmo tempo autobiográfico e ficcional da obra, Walter Benjamin chegou a dizer: “Sabe-se que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela foi, mas sim uma vida assim como aquele que a viveu a recorda.” O que vale para Proust é, pois, a realidade anímica das coisas evocadas e invocadas, o tempo interior com sua duração real, revelado através da memória involuntária, da iluminação momentânea, e da recordação ativa, esta última sempre traiçoeira e ineficaz. Proust desnuda o motor irracional da vida dos instintos e das pulsões e aborda o amor em todas as suas formas. Ele apresenta fugidias passagens de um sentimento a outro, descritas com uma precisão poética jamais vista até então e consegue registrar a instabilidade sensorial de um instante na perenidade eterna de palavras como ninguém fizera até então.

O escritor e uma “réplica” sua vendida no Museu Proust.

O indivíduo aparece registrado em sua condição atomizada e faz de Proust um “destruidor da idéia de personalidade”, conforme disse o mesmo Benjamin. O que se vê em Em busca do tempo perdido é, constantemente, um indivíduo que mostra noções sempre diferenciadas de si mesmo e apresenta noções sempre diferenciadas em relação a outros indivíduos.

A pobreza narrativa é ilusória, os acontecimentos se sucedem uns aos outros. A realidade social da época também comparece, apesar do subjetivismo. No topo da pirâmide social de Proust está situada a aristocracia, cuja decadência e lento processo de dissolução deixa o autor nitidamente fascinado, ainda que o mesmo autor a descreva consciente de que na condição de classe a aristocracia é nada mais do que um “reino do nada”. À aristocracia, Proust opõe uma burguesia vulgar mas ativa, marcada pelo judaísmo, e às vezes tocada pelo bafejo de algum arrivismo artístico. A obra evolui tanto em sua abordagem do pensamento imperante na época que, no sétimo livro da Recherche, são “fechados” vários casamentos entre membros da nobreza e da burguesia, coisa que no primeiro livro ainda seria impensável, societária e literariamente. Os campos da estagnação nobre são, assim, adubados com o esterco da burguesia orgânica e mostram um mundo em intenso movimento e reestruturação.

Combray, hoje

O lugar em que se passa a história é Paris mais alguns arredores como a Combray da infância, que intitula a primeira parte do primeiro livro, No caminho de Swann, ou a Balbec ficcional do segundo e do quarto livros, fundamentada nas praias de Cabourg e Trouville em que o garoto vive suas primeiras experiências adultas. Mas é o tempo que ocupa posição central no romance; ele é o princípio e o fim, o húmus sobre o qual cresce a árvore vigorosa do romance. Sem deixar de tocar a realidade com a ponta dos pés, Proust fala de amores irrealizados, de amizades e traições, da decadência da nobreza e do avanço da burguesia, ilumina acontecimentos históricos como o do caso Dreyfus, entabula questões filosóficas e debate o sentido e o objetivo da arte. A realidade da época comparece inclusive na eletricidade que acaba com as últimas lâmpadas de petróleo, nos coches lentos que dão lugar ao dinamismo rápido dos automóveis.

Apesar de todas essas referências digamos reais, o leitor se perde com facilidade no labirinto de apostos, digressões, frases longuíssimas – Proust é o mais alemão dos escritores franceses, já se disse – e depois da quinta inserção até os mais tenazes às vezes perdem o fio da meada. Tudo começa já no princípio do primeiro livro, com as cerca de quinze páginas que Marcel dedica às dificuldades que tem para pegar no sono. Às voltas com elas, não são – não foram – poucos os que desanimaram ao imaginar que a tartaruga teria ainda quatro mil páginas a percorrer pela frente. “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo.” Está lá, e é só começar… A longa convalescença de uma doença que obriga ao repouso ajudaria um bocado. E inclusive a entender como a realidade poucas vezes dá uma resposta satisfatória à fantasia e só tem algum valor porque pode ser recordada depois.

Rue Royale (Paris, 1900)

Da estrutura da Recherche e as peculiaridades de seus livros

O dinamismo do romance aumenta a partir do quinto livro, A prisioneira. É nele que é contado um drama amoroso cheio de emoção, no qual o narrador se ocupa impiedosamente de seu ciúme com a vida desconhecida de Albertine, sua amante, que ele desconfia ser lésbica, inclusive. Não há coração apaixonado que não trilhe com mais leveza um livro dinâmico, movimentado, que aborda o poder das coisas capazes de atar um indivíduo a outro, a potência do ciúme, o vigor do tédio e a tentativa vã de controlar o objeto do desejo.

Mas a construção é sólida e bem pensada. E não é por acaso que o primeiro livro, No caminho de Swann, aborda mais detidamente os temas da infância, da recordação, da capacidade de se impressionar com as coisas do mundo, de antecipar os fatos e contemplar o mundo em flashbacks. No segundo livro, À sombra das raparigas em flor, o caráter prometedor e comprometedor do amor começam a marcar um homem na passagem da infância para a vida adulta e o narrador se concentra nas alegrias concedidas pela viagem, pela arte e pelo poder da imaginação. Em O caminho de Guermantes, terceiro livro, é estabelecido de uma maneira mais conclusiva o arcabouço por assim dizer societário da obra, quando o narrador trata mais detalhadamente da vida da nobreza, do embate entre essência e aparência, da política, das diferentes formas do esnobismo, e de como se chega ao e depois se mantém o poder social.

Proust escrevendo em seu quarto, segundo Ralph Bruce

No quarto livro, Sodoma e Gomorra, é complementada a questão do amor – muito mais valioso do que a amizade – e o narrador trata mais diretamente, até ensaisticamente no princípio do livro, quando faz uma grande descoberta, do homossexualismo e de seus efeitos sobre indivíduo e sociedade; a moral dupla, as mentiras e os mistérios da sociedade são abordados, deixando claro, entre outras coisas, que “lamentavelmente tanto na sociedade quanto no mundo da política as vítimas são tão covardes que não se consegue considerar os algozes maus por muito tempo.” E se um maior dinamismo é visível no quinto livro, A prisioneira – um dos maiores documentos universais acerca do ciúme, junto com o Otelo de Shakespeare e Dom Casmurro de Machado de Assis – ele continua em A fugitiva, o sexto e penúltimo livro, um degrau antes do ápice, que trata da separação, da morte e do luto; do conhecimento tardio da verdade e do processo de cura que envolve a morte dos eus que vamos deixando para trás depois de nossas grandes perdas.

No sétimo e último livro, O tempo reencontrado, o romance ata e desata os nós propostos desde o princípio, mostrando uma estrutura perfeitamente circular. Nele tudo se resolve, tudo se arredonda e se amarra numa torrente de soluções. O tempo reencontrado, inclusive em seu intenso debate artístico sobre si mesmo – é um grande tratado sobre a arte, que proporciona, inclusive, sublimes olhadelas à oficina literária do autor –, no qual Proust dá todas as respostas para as perguntas que foram feitas nos seis livros anteriores. O tempo reencontrado dá a prova final, mais uma vez, de que para reencontrar algo é preciso perdê-lo antes e mostra um autor que na verdade quis publicar todos seus livros no único volume de um romance, e lamentava ter um tapete grande demais para os exíguos apartamentos modernos, o que o obrigou a cortá-lo em sete partes. A angústia do narrador diante do pouco tempo que lhe resta pra contar devido à enfermidade que o acossa encontra eco na mais perfeita das metáforas para a arte de narrar. Só a morte, esse rei Xariar ainda mais inclemente, pode interromper a busca de quem assim como Xerazade precisa contar, e contar pra dar à vida um sentido que ele não teve enquanto foi vivida.

Charge com Proust no inferno: “madeleines” e mais “madeleines” (clique na imagem para ampliar)

Arremate

Em busca do tempo perdido é, ao fim e ao cabo, arte e teoria da arte ao mesmo tempo, uma prova de que o todo é bem mais do que a soma de suas partes, de que o estilo pode bem ser uma maneira de ver o mundo. Com a obra, Proust faz bem mais do que oferecer sua vida e suas histórias a nossos olhos; ele oferece seus “olhos” para que nós, o leitor, vejamos melhor o mundo lá fora e a alma aqui dentro. O livro é, assim, um instrumento para desvendar o mundo, uma ferramenta de conhecimento, de autoconhecimento das mais nobres e eficazes, sobretudo depois de o assunto ter sido banalizado tanto assim nos últimos tempos. E o próprio autor anota, em O tempo reencontrado, respaldando a observação deste que há tanto tempo se debruça sobre suas páginas: “Na realidade todo o leitor, quando lê, é leitor apenas de si mesmo.”

Proust experimenta tudo na veia como as crianças, busca o mundo informe como se o visse pela primeira vez, sem permitir que nada embote sua sensibilidade. Ele mostra, seguindo a lei de Bergson, que os conceitos do mundo causal-mecânico são roupas folgadas, que não assentam bem, e que só as suas intuições – assaz proustianas e precisas – é que são modelos da haute couture, feitos sob medida e de caimento perfeito na compreensão das coisas da vida e do mundo. A existência como um todo, aliás, é apresentada no romance como se fosse um líquido despejado em milhares de recipientes que jazem uns ao lado dos outros, aos quais a recordação, a busca e a pesquisa do tempo perdido concedem vasos comunicantes.

Tentei, pois, descrever as peculiaridades do avanço de uma tartaruga em meio segundo e estou contente, ao final, de não ter falado nem sequer da madeleine. São tantos os turistas ansiosos que depois de “morarem” doze anos em Paris se mostram capazes apenas de mencionar e debater as belezas banais da torre Eiffel…

Marcelo Backes é escritor, tradutor e professor. Doutor em Germanística e Romanística pela Universidade de Freiburg, na Alemanha, é autor dos romances Três traidores e uns outros (Record, 2010) e maisquememória (Record, 2007) entre outras obras.

No início de maio de 2013 a Companhia das Letras publica seu romance Terceiro tempo.


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